Ela acorda todos os dias às 4:30.
Prepara a marmita do marido e o café preto.
O pão já acabou.
O mês ainda não.
Corta o alho e a banha que guardou.
Eram as sobras que a patroa sempre joga no lixo.
Dora pensa: “Que bom que a patroa é light”- e ri.
Fritando o alho na banha, joga o arroz contado.
Pensa: “dando para as crianças e para o marido
já está de bom tamanho”.
O feijão já está cozido na geladeira.
Está pouco, mas ela aumenta com água e farinha.
Pronto. Marmita pronta. Café pronto.
Acorda as crianças.
Apronta a prole para a creche.
Sapatos impecáveis.
Cabelos molhados, grudados no couro cabeludo.
Dentes escovados. Tudo pronto.
Caminho longo, à pé, até chegar.
Mas tudo passa rápido, graças às belas histórias de Dora.
Sim, ela definitivamente é boa ao contá-las.
As crianças se divertem,
e os risos fazem os pés não doerem tanto.
Às vezes Dora chora.
Na casa da patroa ela pode almoçar...
nunca falta nada.
Sempre tem arroz, feijão, carne, legume e verdura.
Mal consegue engolir a refeição, pensando no marido, pobrezinho... na roça.
Quanto às crianças,
elas tomam um bom leitinho se soja c
om bolacha na escola,
de manhã.
Depois almoçam uma sopa nutritiva.
Na saída da escola tem uma fruta.
Definitivamente: elas comem muito bem.
Mas o marido... pobre homem!
Mal chega aos seu 45 quilos...
e carrega aquela foice pesada o dia todo.
Ele corta cana de açúcar.
Dora não come carne.
Não que não lhe agrade o sabor de um bom bife.
São os dentes que lhe faltam na boca.
Muitas vezes ela pede as sobras de comida prá patroa,
que é definitivamente muito boa!
Dora diz que é para o Rex, seu cachorro.
Dora mente – aliás, como toda boa contadora de histórias,
é uma grande mentirosa.
As sobras são para o jantar das crianças e do marido.
Inclusive, Dora mente duas vezes:
o Rex já morreu há alguns meses.
Atropelado por uma viatura.
Pobre Rex. Ele era um bom cão!
Dora não janta.
Dora prepara a mesa e se senta.
É tão bom ver as crianças se fartarem assim!
Todas as vezes que tem sobras na patroa,
as crianças têm mistura.
Dora agradece a Deus pelo alimento que,
no final das contas, nunca falta à mesa.
Mal ou bem, as crianças não passam fome.
Nem o marido. Nem ela.
Nunca lhe faltara serviço, porque Dora faz de tudo um pouco. Faz faxina, limpa piscina,
é boa na roça, é boa na costura, no crochê...
e assim segue a vida.
Mais um dia desta mulher se passa.
Ela já fez os seus 40 anos.
Mas sente sua alma jovem.
Quer ver as crianças crescerem.
“Ainda vou ter um filho doutor”
- é o que ela sempre diz para as visitas.
As pequenas quatro criaturinhas dormem,
lado a lado, num colchão de casal.
Dora começa a pensar no futuro:
e quando esta coberta ficar pequena para eles?
A cama já está curta.
Tem pé que já dorme pendurado... ou encolhido.
Mas logo ela se lembra de Deus,
e faz a mesma prece de sempre:
“Deus, não deixe faltar nada para os meus filhos”.
E Deus sempre atende aos pedidos de Dora.
Antes de se deitar,
ela pega a bacia com água morna e uma bucha.
Lava os pés da criançada.
Faz uma gracinha com cada um.
Todos de pés limpos.
Oração.
Beijo na testa de cada um.
Dora vai até a porta
– segue o mesmo ritual desde que nasceram os gêmeos mais velhos –
faz o gesto de uma grande cruz com a mão direita sobre os pequenos.
Uma bênção grande.
Dora é uma mulher de fibra.
Riso fácil.
Sem fome.
Sem sono.
Incansável.
De muita fé.
Nunca deixou faltar nada em casa.
Nada.
Na casa de Dora, tudo é medido.
Nada é desperdiçado.
O arroz, o feijão, a farinha...
Mas o amor é despejado em altas doses
sobre cada filho que se deita à cama quente.
A casa de Dora é um ninho.
Um ninho de amor, paz e esperança.
A casa de Dora é uma incubadora de sonhos.
Promete bons frutos à humanidade.
ELOISA ROCIA